terça-feira, 5 de novembro de 2013

Narradores de Javé

Narradores de Javé



“O povo aumenta, mas não inventa”. Esse ditado popular legenda a capa do DVD do filme “Narradores de Javé” (2003), de Eliane Caffé. Javé é uma cidade fictícia, ameaçada pela construção de uma represa. A única chance de salvação seria o tombamento como patrimônio da humanidade. No entanto, aparentemente, não há nada em Javé que justifique essa medida. A única coisa considerada importante por seus moradores são as histórias sobre a fundação da cidade, contadas sob o prisma épico e pessoal de cada um. Decidem, então, escrever a história de Javé, mas são todos analfabetos. Antônio Piá, funcionário do Correio, é o único cidadão que sabe escrever e fica incumbido da missão. As versões que escuta sobre a fundação da cidade são diversas, como tudo cuja materialização se mantém apenas na oralidade. Exibi o filme para alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos), e refleti com eles sobre o poder que a linguagem escrita muitas vezes confere a quem a domina.
O destino de uma cidade inteira está nas mãos de um único homem que fará o que bem entender com as histórias que escuta. Os verdadeiros autores, o povo, nada podem fazer em relação ao que será registrado no papel, pois não sabem ler nem escrever. A sua história será contada pelo escrivão píncaro interpretado por José Dumont. Se todos dominassem a escrita,  poderiam contar, cada qual, sua versão dos fatos, já que fatos escritos são apenas versões.
 Os moradores de Javé sabem que sua história só será reconhecida se for “científica”. Mas  fatos cuja existência depende de um Homero gaiato, contador de piadas, mentiras e paródias  não têm como ser considerados científicos pela cultura dominante. 
Em nossa civilização, a palavra não tem importância se não estiver escrita,  autenticada, registrada. Tentei levar os alunos a concluírem que se não dominarem bem a linguagem escrita, estarão sempre a mercê das armadilhas dos textos criados pelos bancos, lojas, imprensa, empresas, políticos, que com suas ficções bem arranjadas podem ludibriar tanto quanto Antônio Piá. Ler e escrever são condições para o exercício da cidadania. Espanto-me toda vez que encontro alguém que não saiba executar minimamente essas tarefas.

Os  moradores  perdem suas terras e casas para um complexo empresarial que, em nome do progresso, ignora os vínculos afetivos que os personagens têm com o lugar onde nasceram, criaram seus filhos e onde pretendem morrer. Mesmo se tivessem conseguido escrever a epopeia da fundação da cidade, não impediriam a construção da represa; porém suas palavras não se perderiam no tempo. Continuariam inventando e aumentando “causos” e seriam reconhecidamente seus autores, se soubessem ler e escrever.

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