domingo, 8 de dezembro de 2013

Ficção humana





Todo ser humano é um personagem ficcional. O que os outros sabem a respeito de nós mesmos é unicamente aquilo que narramos. Ao narrar omitimos, acrescentamos, parodiamos e parafraseamos  fatos e frases. Eis porque acredito que nada que seja dito ou escrito por alguém seja cem por cento fiel à realidade que representa, nem mesmo a mais científica das teses. Tudo que passa pela linguagem é diretamente afetado pela subjetividade. Viveríamos então num mundo de mentiras bem contadas? Não, pois ficção narrativa não é mentira.
Deus é ficção, e é uma verdade para bilhões de pessoas. Afirmo que é ficcional, pois só sabemos a respeito de Deus o que se narrou sobre ele. O computador em que escrevo este texto não se trata de ficção para mim, ele existe independentemente da linguagem ou do fato narrativo sobre ele. À medida que explicamos o mundo ou a nós mesmos, construímos nossas ficções para o outro. Por isso penso que é impossível conhecer alguém inteiramente. O que conhecemos são apenas personagens que se autobiografam cotidianamente para aqueles com os quais convivem.
Em uma sessão de terapia, o paciente narra ao terapeuta suas “angústias”, sonhos, prazeres, etc. A fofoqueira narra à vizinha a vida do outro. Narramos ao policial como  foi o acidente de trânsito e o certo na situação é sempre o que conta sua versão. Tentamos justificar nossa ausência no trabalho agravando incidentes cotidianos e simulamos febres e dores quando queremos o outro bem pertinho. Não nos condenemos pelas narrativas que criamos sobre nós mesmos todos os dias, pois é uma questão de sobrevivência. Mentir é outra coisa. Dizer que Napoleão Bonaparte descobriu o Brasil seria uma mentira. Mas afirmar que Cabral chegou aqui por acaso é apenas uma ficção que os historiadores inventaram por muitos anos.
Em meu livro “O julgamento de Lúcifer”, Deus diz o seguinte ao “anjo decaído”: “Somos duas metáforas, filho. Um romance de natureza mais lírica do que épica.” Talvez assim seja o homem. Não há nada de heróico em  seus feitos, por mais que se julgue autor de grandes histórias.  A narrativa humana é  de um lirismo quase cego. Uso o substantivo “lirismo”  numa acepção poética. O homem é um poema em primeira pessoa. Cada verso-dia é uma tradução de suas alegrias, amores, solidão e infortúnios. Puro lirismo sentimental.

Walter Benjamim escreve que “A arte de narrar aproxima-se de seu fim porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” Discordo do célebre filósofo. Continuamos intercambiando experiências por meio da narração como faziam os povos antigos. A grande diferença é que nossos interesses são cada vez mais individuais e menos coletivos. É a natureza épica do homem que está em extinção.

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