Todo ser humano é um personagem ficcional. O que os
outros sabem a respeito de nós mesmos é unicamente aquilo que narramos. Ao
narrar omitimos, acrescentamos, parodiamos e parafraseamos fatos e frases. Eis porque acredito que nada
que seja dito ou escrito por alguém seja cem por cento fiel à realidade que
representa, nem mesmo a mais científica das teses. Tudo que passa pela linguagem
é diretamente afetado pela subjetividade. Viveríamos então num mundo de
mentiras bem contadas? Não, pois ficção narrativa não é mentira.
Deus é ficção, e é uma verdade para bilhões de pessoas.
Afirmo que é ficcional, pois só sabemos a respeito de Deus o que se narrou
sobre ele. O computador em que escrevo este texto não se trata de ficção para
mim, ele existe independentemente da linguagem ou do fato narrativo sobre ele.
À medida que explicamos o mundo ou a nós mesmos, construímos nossas ficções
para o outro. Por isso penso que é impossível conhecer alguém inteiramente. O
que conhecemos são apenas personagens que se autobiografam cotidianamente para
aqueles com os quais convivem.
Em uma sessão de terapia, o paciente narra ao terapeuta
suas “angústias”, sonhos, prazeres, etc. A fofoqueira narra à vizinha a vida do
outro. Narramos ao policial como foi o
acidente de trânsito e o certo na situação é sempre o que conta sua versão.
Tentamos justificar nossa ausência no trabalho agravando incidentes cotidianos
e simulamos febres e dores quando queremos o outro bem pertinho. Não nos
condenemos pelas narrativas que criamos sobre nós mesmos todos os dias, pois é
uma questão de sobrevivência. Mentir é outra coisa. Dizer que Napoleão
Bonaparte descobriu o Brasil seria uma mentira. Mas afirmar que Cabral chegou
aqui por acaso é apenas uma ficção que os historiadores inventaram por muitos
anos.
Em meu livro “O julgamento de Lúcifer”, Deus diz o
seguinte ao “anjo decaído”: “Somos duas metáforas, filho. Um romance de
natureza mais lírica do que épica.” Talvez assim seja o homem. Não há nada de
heróico em seus feitos, por mais que se
julgue autor de grandes histórias. A
narrativa humana é de um lirismo quase
cego. Uso o substantivo “lirismo” numa
acepção poética. O homem é um poema em primeira pessoa. Cada verso-dia é uma
tradução de suas alegrias, amores, solidão e infortúnios. Puro lirismo
sentimental.
Walter Benjamim escreve que “A arte de narrar aproxima-se
de seu fim porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.”
Discordo do célebre filósofo. Continuamos intercambiando experiências por meio
da narração como faziam os povos antigos. A grande diferença é que nossos interesses
são cada vez mais individuais e menos coletivos. É a natureza épica do homem
que está em extinção.
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