“O povo aumenta,
mas não inventa”. Esse ditado popular legenda a capa do DVD do filme
“Narradores de Javé” (2003), de Eliane Caffé. Javé é uma cidade fictícia,
ameaçada pela construção de uma represa. A única chance de salvação seria o
tombamento como patrimônio da humanidade. No entanto, aparentemente, não há nada
em Javé que justifique essa medida. A única coisa considerada importante por
seus moradores são as histórias sobre a fundação da cidade, contadas sob o
prisma épico e pessoal de cada um. Decidem, então, escrever a história de Javé,
mas são todos analfabetos. Antônio Piá, funcionário do Correio, é o único
cidadão que sabe escrever e fica incumbido da missão. As versões que escuta
sobre a fundação da cidade são diversas, como tudo cuja materialização se
mantém apenas na oralidade. Exibi o filme para alunos da EJA (Educação de
Jovens e Adultos), e refleti com eles sobre o poder que a linguagem escrita
muitas vezes confere a quem a domina.
O destino de uma
cidade inteira está nas mãos de um único homem que fará o que bem entender com
as histórias que escuta. Os verdadeiros autores, o povo, nada podem fazer em
relação ao que será registrado no papel, pois não sabem ler nem escrever. A sua
história será contada pelo escrivão píncaro interpretado por José Dumont. Se
todos dominassem a escrita, poderiam
contar, cada qual, sua versão dos fatos, já que fatos escritos são apenas
versões.
Os moradores de Javé sabem que sua história só
será reconhecida se for “científica”. Mas fatos cuja existência depende de um Homero
gaiato, contador de piadas, mentiras e paródias não têm como ser considerados científicos pela
cultura dominante.
Em nossa
civilização, a palavra não tem importância se não estiver escrita, autenticada, registrada. Tentei levar os
alunos a concluírem que se não dominarem bem a linguagem escrita, estarão
sempre a mercê das armadilhas dos textos criados pelos bancos, lojas, imprensa,
empresas, políticos, que com suas ficções bem arranjadas podem ludibriar tanto
quanto Antônio Piá. Ler e escrever são condições para o exercício da cidadania.
Espanto-me toda vez que encontro alguém que não saiba executar minimamente
essas tarefas.
Os moradores perdem suas terras e casas para um complexo
empresarial que, em nome do progresso, ignora os vínculos afetivos que os
personagens têm com o lugar onde nasceram, criaram seus filhos e onde pretendem
morrer. Mesmo se tivessem conseguido escrever a epopeia da fundação da cidade,
não impediriam a construção da represa; porém suas palavras não se perderiam no
tempo. Continuariam inventando e aumentando “causos” e seriam reconhecidamente
seus autores, se soubessem ler e escrever.